domingo, 14 de junho de 2009

Conveniência da infelicidade


É engraçado como certas coisas, muito pequenas às vezes, são o estopim de grandes divagações e horas de pensamento solto. Isso me acontece sempre, normalmente algo acontece no meu dia e eu levo os acontecimentos comigo para cama à noite e fico perdida no meio das minhas teorias e até discursos eu faço para minha própria mente sonolenta. E normalmente só fico ainda mais cansada de pensar tão exaustivamente e não chego a conclusão nenhuma. E eis que ontem eu fiquei pensando sobre tudo que deixamos de fazer na vida sob influência externa. Quero dizer, tudo que a gente tem vontade de fazer mas não faz, porque algo ou alguém pode ser influenciado pelos nossos atos e normalmente somos levados a abrir mão deles. Pode ser algo que queremos muito, algo realmente importante e que sabemos que é necessário para a nossa realização pessoal, mas não tomamos a decisão final e não seguimos adiante. Deixamos tudo confortavelmente como está, um total descompromisso com a nossa felicidade em favor da conveniência.

Pensando nisso eu lembrei de quando era criança e ia brincar na casa da minha prima. Ela tinha muitos brinquedos, eu também. A diferença é que os dela estavam todos intactos, dentro das caixas. Minhas bonecas eram riscadas, normalmente faltava alguma parte importante do corpo, os cabelos cortados, a roupa original perdida há muito tempo, os sapatos provavelmente desaparecidos no dia que o brinquedo chegou às minhas mãos. As da minha prima não; elas repousavam dentro das suas caixas, com as roupinhas em perfeito estado, o sorriso imaculado estampado no rostinho de plástico, os cabelos sem um cacho fora do lugar! Meus jogos de tabuleiro eram muitas vezes improvisados, por falta de peças. Os dela eram guardados dentro das caixas, cada coisa em seu lugar, e as caixas ficavam dentro de uma cristaleira antiga, coisa impensável na minha casa, por medo dela não durar tempo o suficiente pra valer à pena. Meus cadernos da escola eram cheios de orelha, de tanto eu debruçar sobre as páginas dobradas, e minha caligrafia não chegava nem perto de ser perfeita. Os materiais da minha prima eram o sonho de qualquer mãe, todos encapados e bem-cuidados, nem um borrão de tinta ou mancha de borracha. Ela era a criança perfeita para muitas mães, inclusive a dela, que exigia nada menos do que isso. Meus brinquedos quebrados e mal cuidados eram motivo de discussão em casa, sim. Mas nunca fui comparada à minha prima e nunca exigiu-se de mim a sua perfeição. Ela não podia ser diferente, não tinha escolha, era realmente obrigada a ser perfeita. Eu pelo menos tinha a chance de errar e aprender com meus erros e, quem sabe, acertar da próxima vez, cuidar dos presentes do próximo Natal com mais zelo.

A gente cresce e a vida passa a ser nosso brinquedo. Não é justo não arriscar viver e ser feliz por medo da queda e do erro, porque um dia nos disseram que ir "contra a maré" não é certo, que cair pode ser perigoso e mesmo inaceitável. Ninguém tem o direito de roubar as nossas chances de acertar, mesmo correndo riscos de errar. Ninguém pode nos exigir uma perfeição inventada, conveniente, quando o que está em jogo é a nossa felicidade. A vida é efêmera. A felicidade também é efêmera. Voltei à casa da minha prima há uns meses atrás e os brinquedos estavam quase todos lá ainda. As bonecas ainda existiam, mas não eram mais como eu me lembrava. Estavam amareladas pelo tempo, as roupas encardidas pela umidade, os cabelos espetados de poeira. Os jogos empilhados em cima do guarda roupa, há muito tempo esquecidos naquele lugar. Tudo intacto, quando como éramos crianças, mas apodrecidos e arruinados pelo tempo. Não quero olhar para trás e perceber que as chances que eu tive foram como os brinquedos deixados nas caixas: reflexos de grandes oportunidades de satisfação que nunca foram realmente vividas.


Imagem: deviantArt

10 comentários:

Kenia Santos disse...

Post perfeito Lorena!

Como você, também faço a noite ser pequena demais para tantos pensamentos na minha cabeça.

Eu digo pra mim mesma e para os meus amigos o tempo todo que a escolha é nossa, que precisamos tomá-la em nossas mãos e não permitir que ninguém controle a nossa vontade. Deixar-se ser controlado pelo outro gera grande frustração, aquele sentimento de 'será que eu teria sido mais feliz?'... Por isso eu procuro estar sempre no controle da minha vida, agradeço a participação e opinião de meus amigos e parentes, mas eu faço o que tenho vontade de fazer pq como vc mesma colocou, não quero sair desse mundo sentindo que fiz menos do que podia ou deveria.

Pensamento lindo saído de uma cabeça linda. Se cuida menininha! Beijo carinhoso com doçura!

Amigao disse...

Grande lição a dos brinquedos guardados.Já reparei que algumas mães compram brinquedos caríssimos e os guardam lá no alto do armário onde a criança não alcança.
Muitas vezes me parece que aqueles brinquedos estão lá para qualquer coisa, menos para brincar.
Criança quebra tudo mesmo.
O tempo passa e os brinquedos continuam intactos.

É que a gente deixa os brinquedos muito alto e depois ficamos com preguiça de subir para alcançá-los e deixamos de brincar.
A vida é assim mesmo.

Bom dia pra você,mas bom dia mesmo!

Thais disse...

Eu até hoje sou assim.. Perco tudo, pq não tenho dó de usar. Qdo era criança éramos assim tbm.. Deixar bonecas pras filhas? Nem em sonho.. hihihihi..
Mas tanta coisa (tenta?) rouba de nós a chance de tentar, né Lóris? Tantas convenções sociais, mtas vezes invisíveis, nos amarram... É sempre trabalhoso buscar nosso caminho, né? =D

disse...

Lorena minha criança,

muito obrigada pelo carinho.
Estou longe daqui, faz tempo que não venho, mas você está e sempre estará bem juntinho do meu coração.
Sou completamente a favor do texto, brinquedos foram feitos para brincar, a não ser que a criança queira e consiga guardar, aí também acho bom.

Beijos minha linda!

Anônimo disse...

Eu também fico pensando e viaja até tarde assim. Tantas coisas nós perdemos por causa dos outros, por convenções bobas que poderiam ser quebradas. A gente perde tanta vida por besteira.

Quando eu era criança, eu e minhas irmãs inventávamos todos os tipos de brincadeiras. Imagina uma casa com 4 meninas! A gente tinha que arrumar depois, mas a bagunça na brincadeira era liberada.

Lógico que meus pais não gostavam de algumas coisas (como no dia que pegamos os discos e fizemos deles uma passarela pra desfile hehe), mas toda imaginação era permitida.

Nossos pouquíssimos brinquedos que restaram estão guardados (o resto a gente deu) e dá um orgulho ver aquela Barbie da cabeça colada, porque ela foi aproveitada. Uma pessoa com marcas viveu.

Já aquela que permanece parada, fica amarelada com o tempo.

Perfeita essa analogia!! Adorei!

Beijão!

Dulce Miller disse...

Que lindo, Lore!
Você me deixou aqui a pensar sobre meus próprios "briquedos", sobre meus medos e sobre os riscos que nunca deixei de correr. Nunca tive medo de tentar nada, porém, hoje as coisas são um pouco diferentes. Sou mãe, então não posso mais fazer nada nesta vida sem primeiro pensar nas consequencias dos meus atos. Penso em todos os prós e contras e a decisão é sempre a mesma: meu filho em primeiro lugar.Não fosse por ele, eu estaria hoje correndo o mundo. Viajar, viajar, viajar... tipo uma cigana, sabe? rsrsrsrs
Mas por ele eu me aquieto feliz.

Beijos, querida!

Letícia disse...

Como sempre, você reflete e muito bem. Você é muito madura - e acho que já falei isso. Sempre existe outra perfeição e a nossa não é suficiente. E a vida como um brinquedo? Diria que é o mais complicado de todos.

Beijos, Lori.

Líviarbítrio. disse...

"A gente cresce e a vida passa a ser nosso brinquedo."

Cabe a nós deixá-la intacta ou recriá-la dia após dia.

Muito bom, adorei a analogia.
Eu nunca fui cuidadosa com os meus brinquedos, bem como não sou cuidadosa com a minha vida, com os meus medos, anseios e sonhos.

Parabéns pelo Mestrado! ;)
Beijos.

Rounds disse...

hey,

não entre nessa de olhar para trás e se lamentar das coisas que não fez, viu?

e as coisas vividas, onde ficam?

bj

Anônimo disse...

As vezes parece que você vê a minha alma. Sem brincadeira!
bjs