quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Árvore dos Sonhos

"De repente Minguinho virou o mais lindo cavalo do mundo; o vento aumentou mais e o capinzal meio ralo do valão se transformou numa planície imensa e verdejante. Minha roupa de cowboy estava ajaezada de ouro. Relampejava em meu peito a estrela de xerife.
- Vamos, cavalinho, vamos. Corre, corre... "

Meu Pé de Laranja Lima - José Mauro de Vasconcelos
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Quando eu era criança morava num bairro bem pobre, numa cidade da grande Vitória, uma cidade com todo o ar de interior. Meu bairro tinha até nome de vila, e todo mundo conhecia todo mundo, e todo mundo é meio parente de todo mundo. Minha família toda ainda mora na Vila e apesar de ter desenvolvido um pouquinho desde que saímos de lá, ainda parece bem com o que eu me lembro da época de criança, os mesmos velhos de chapéu nas calçadas debaixo das castanheiras, as senhoras conversando na beira dos muros, crianças e animais embolados no meio da rua numa brincadeira conjunta, gente tocando boi e porcos fuçando moitas e latas de lixo. Era muito bom ser criança lá porque podíamos ter todas as regalias das crianças que moravam no interior de verdade com a comodidade da Cidade estar perto.

Eu morava na rua Minas Gerais, bem lá no alto do morro. Do meu quarteirão para cima a rua era calçada, pra baixo era rua de terra batida, perfeita para brincar de todo tipo de coisa. Mas o que eu gostava mesmo era de passar a tarde na casa de uma companheira de brincadeiras, a Jane. Ela morava na parte sem calçamento da rua, mas bem próximo à minha casa, podemos dizer que era praticamente minha vizinha. Como a maioria das crianças do bairro, Jane não tinha muitos brinquedos. Naquele lugar de tanta pobreza, minha família que nunca foi rica, era considerada muito "bem de vida", nós tínhamos carro e telefone e na época podíamos contar nos dedos quem mais da rua tinha as mesmas regalias. E eu e minha irmã tínhamos brinquedos de verdade, mais de uma boneca cada uma, inclusive Barbies, o símbolo máximo da nossa "riqueza" infantil. Mas na verdade quando a brincadeira começava, ninguém queria saber de bonecas nem Barbies, nem nenhum brinquedo que viesse de fábrica. Bom mesmo era o jardim da casa da Jane e o seu pé de ameixa amarela (o que mais tarde eu soube que também chamam de nêspera).

Na minha infância ele era tudo, menos um pé de ameixa. Podíamos passar a tarde toda penduradas nos seus galhos, ora brincando de alpinistas ("me ajuda que eu vou cair!", "toma essa corda" e lá vinha um pedaço de barbante com uma pedra na ponta, me salvar do desabamento), ou de prédio de apartamentos, essa era nossa favorita. A ameixeira, se alguém conhece, é uma árvore de certa forma frondosa, com vários galhos saindo de um mesmo nó. Pois bem, cada conjunto de galhos era um "apartamento". Eu deixava a Jane morar no mais alto, porque tinha medo de subir e cair lá de cima, afinal o pé de ameixa não era meu e eu não era tão acostumada assim com os seus galhos. Ela era minha vizinha de cima e eu ficava nos galhos mais baixos. De lá podíamos fazer tudo: comidinha (quando o pé estava carregado nem precisávamos fingir), ninar um bebê, fazer faxina, tudo penduradas pelos braços e pés nos galhos da ameixeira. Pra descer usávamos a escada porque o elevador nunca funcionava... Às vezes era bom apenas ficar lá em cima olhando o mundo que se resumia ao quintal da casa da Jane e os quintais vizinhos. Às vezes ficávamos observando a tia dela cozinhar feijão no fogão a lenha que ficava encostado no muro, bem perto do pé de ameixa, e sentíamos aquele cheirinho de feijão cozido gostoso que abre o apetite. Em dezembro a ameixeira virava nossa árvore de Natal, coisa que nenhuma das duas tinha em casa "de verdade", então nos virávamos com nosso companheiro de brincadeira. Não enfeitávamos os galhos porque não tínhamos enfeites. Mas nos pés da árvores tinha um bocado de areia e naquele pequeno areal nós montávamos um presépio de cacos de lajota. Como faz? Ora, é fácil. Você junta alguns cacos de lajota de tamanhos diferentes, coloca em pé os que representam as figuras humanas e deitados os que representam os animais. Se quiser, pra ficar mais real, pode desenhar o rosto de Nossa Senhora, São José e do Menino Jesus e o focinho dos bois e do burrinho. Inventávamos também uma gruta feita de pedrinhas, mas era sorte se o vento não batesse e derrubasse as pedrinhas em cima da nossa obra de arte, então não fazíamos sempre.

Mas a melhor parte era quando a árvore ficava carregada de ameixas amarelinhas... Aí não existia brincadeira melhor do que passar a tarde se empanturrando de frutas, engolindo a polpa amarelinha e azeda e cuspindo o caroço preto. Eu ainda lembro a alegria que eu senti quando, depois de mais de 10 anos, eu comi uma ameixa novamente. Na Bahia elas não são muito fáceis de achar, então só encontrei depois que mudei pra cá para Minas. Quando vi aquelas frutinhas no quitandeiro, uma caixa daquelas frutas amarelas com casca peludinha, uma emoção tomou conta de mim que eu nem sei explicar. Eram os frutos da minha infância, o gosto das brincadeiras que tomavam uma tarde. Era como se eu voltasse aos meus oito anos e aos galhos firmes da ameixeira, a sensação de liberdade daquela época voltando a cada mordida, engolindo a polpa amarela e cuspindo o caroço fora. Foi como se eu voltasse a sombra daquela árvore que nunca foi árvore, mas um mundo a parte na imaginação de duas meninas.

Eu não sei onde está Jane... Da última vez que a vi, ela tinha se casado e morava ainda no nosso bairro, mas eu não sei bem onde. Eu a vi de longe na igreja e a reconheci de imediato, mas não tive coragem de chegar perto e falar com ela. Não sei bem porque, acho que para evitar perder a menininha que ela era, que eu guardei aqui dentro de mim. Hoje somos muito diferentes, cada uma tomou sua direção na vida, e nosso mundo não é mais como o faz-de-conta compartilhado em cima do pé de ameixa. E esse sonho é precioso demais para ser pertubado pela realidade. Também não sei o que foi feito do nosso "amigo" e toda vez que passo em frente à casa dos pais de Jane eu tento espiar por cima do muro. Mas também não ouso perguntar por ele. Tenho medo de saber que ele virou lenha e não dá mais ameixas, e que nunca mais uma menina vai sonhar pendurada nos seus galhos.
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Post em homenagem ao dia das crianças. =)

16 comentários:

Dulce Miller disse...

Que lindo!!!

Terminei de ler, fechei os olhos e vi um filme...lembrei dessas ameixas e senti o gosto delas, lembrei das brincadeiras de infância e das minhas inseparáveis bonequinhas de papel, lembrei do dia em que cortei o queixo quando cai de uma árvore onde eu imitava o Tarzan (ou seria a Jane?) rsrsrsrsrs...Nostalgia pura!
Obrigada Lô!

Beijão procê!

Leandro Neres disse...

Lindo post, como sempre... E os símbolos, fiquei pensando numa história que meu pastor contou certz feita... Eles moravam no interior do RS, lá não havia a tradição do Papai Noel, era um sítio, e o universo deles era todo da cultura local... O que havia era o "Menino Jesus", eles deixavam as meias nas janelas e o Menino Jesus lhes entregava presentes... Ele cresceu assim, com a imagem de que o Menino Jesus era esta pessoa bondosa e caridosa, que sempre entregava presentes para eles, e sempre, os melhores presentes do ano... E fomos conversando, meu pastor e eu, ele que estudou na mesma faculdade de Teologia q a minha disse que esta imagem simbólida de Jesus, que depois foi passada pela escola bíblica, catequese foi tão marcante para ele, que por mais que estudasse teólogos céticos e historicistas, o que sempre importou foi a imagem, este símbolo de Jesus, este, não tinha como ser rompido, e se o fosse, provavelmente sua fé nunca mais seria a mesma...
Eu fiquei vendo teu comentário sobre não se aproximar da pessoa "real" que se tornou tua amiga e da árvore queimada ou envelhecida... Acredito que este receio seja bom, vale a pena proteger nossa condição existencial, talvez romper com o mundo mágico da infância a obrigaria a reconstruir a pessoa que é...
Bom, só sei que fiquei pensando nesta coisa de símbolos e imagens infantis... rs
E acredito que o mesmo ocorra comigo e a Vida dos Operadores, um lugar mágico, pscina, praia artificial, quadras de tênis, squash, basquete, etc, era uma vila com 500 habitantes, tudo absolutamente calmo, limpo e belo... Há uns três anos eu resolvi visitar a Vila, puxa, pensei que fosse me sentir feliz, mas o que veio foi uma tristeza tremenda, ao ver que as casas comuns haviam se transformado em mansões e num condomio com ruas vazias, tudo não passava de um vento frio e uma praia vazia... E nunca mais voltei, nem ninguém em casa pretende voltar para lá... O que vale mesmo é guardar a imagem bela com que vivemos e temos marcada em nossa alma... Isso é o que importa...
Bom, viajei na maionese aqui, mas é culpa do teu texto, rs.
Um abraço...
Feliz dia das crianças^^
Leandro

Lorena disse...

Du,
escreve suas histórias de infância também, eu vou adorar lê-las! =) Obrigada pelas palavras queridas!

Leo,
linda a história do seu pastor! Acho que antigamente as crianças esperavam mesmo o Menino Jesus... Eu só acho triste quando o Menino Jesus não "nasce" pra algumas crianças, porque elas nunca ganham presentes no Natal... Aí nesse caso, apenas nesse, prefiro o Papai Noel, pq botar a culpa no velho barbudo tudo bem, né... =P

E eu sei como é a sensação de voltar a um lugar e ele não existir mais... Havia uma praia lá em Guarapari que íamos mto quando eu era criança, era um lugar perfeito, um pequeno paraíso... Hoje em dia virou propriedade privada. ¬¬ Uma tristeza...
beijos!

Leandro Neres disse...

hahaha, sim sim, antes da Coca-Cola devia ser só o Menino Jesus mesmo... Mas eu tenho q impressão de que não havia tanto marketing e propaganda em cima da cabeça das crianças, sei lá... Ao menos minhas tias e meus pais não tinham essa paranóia que eu tive não haha... Se bem que eles vieram de famílias bem simples, então já havia essa consciência do que era dos ricos e do que era da realidade deles... Mas eu gostei da tua teoria de Papai Noel Velho Batuto, o que fica de ruim a gente atribui ao papai noel^^
E fica como sugestão, já pensou na próxima vez que voltar para tua Vila falar com tua amiga de infância? Sabe pq eu perguntei isso? Pq hj de tarde eu re-encontrei um amigo de infância na net e foi mto massa!!! =p
Bjos!
Leandro

Lorena disse...

Mas sabe que eu gosto do Papai Noel, eu gosto dele... Acho ele bonachão com aquela cara rosada e aquela barba branca. Só que se for pra pegar alguém pra Judas, que seja o velho, né? Deixem o Menino Jesus quieto! =P

Que bom que vc encontrou teu amigo e foi legal!^^ É, quem sabe, se eu cruzar com ela de novo quando for pra lá... =)

Unknown disse...

entaaao!é um filme pra novembro - pra uma matéria da faculdade!


pode sr q passe no canal da net - mas de qualquer maneirase nao passar, dpois eu e empresto uma cópia!;)

obs: meu pé d laranja lima é muito legal - livro da segunda série q me marca até hj - assim como nos reinos de narizinho(sitio do pica-pau amarelo), se tornou meu marco inicial na leitura!!!


adoro ler seus posts! gosto da trilha sonora, da foto e amelie, etc...
a propósito, vc conhece a trilha sonora de amelie poulain?? É muito linda!

Unknown disse...

obs: te add aos meus favoritos!

Camila disse...

Que homenagem mais linda ao dia das crianças, Lorena!

A vovó Rô me envou um meme que era extamente sobre isso contar um história de criança. Também contei uma historinha (mas bem curta) da época que eu ia mais pro interior, pra fazenda do meus avós. Dá uma saudade, né?

Beijinhos pra você!

Anônimo disse...

Lorena,
eu não resitir em comentar seu post!!
Meu Deeeeus!! Que lindoo!!!!
Nostalgia, lembrei de taanta coisa... fiquei ate sem palavras para poder comentar!!
Brincar de barbies, amiga de infância que não sabe onde tá, só tem as lembranças...
LIndo demais, Lo!!
Ain que saudade de vc!!

Éverton Vidal Azevedo disse...

Sei lá viu... Uma trsiteza alegre ou uma alegria trsite é o que senti no fundo do texto. E nem tente me entender Lorena rs. Fiz minha viagem também, ao bairro onde morei em Rio Branco. Nao tinha ameixa amarela lá (coisa que eu nunca vi, ainda) mas tinha goiaba, manga e graviola. E amigos... Escrevi uma carta pra eles quando cheguei em Manaus, nunca me responderam - eu pensava. Mas responderam sim, só que a carta deles nunca me chegou às maos e perdemos o contato.

Será que eu também ficaria de longe, e nao chegaria perto dos amigos da infância? Nao sei. Mas te entendo... como te entendo. As coisas mudam tanto de direçao né? Melhor deixar as coisas como estavam, talvez.

Por sinal, há uma certa irmandade entre o texto que postei hoje (da memória) e o seu.

Bj.
Inté!

Éverton Vidal Azevedo disse...

Feliz dia das crianças^^

[2]

rs

Letícia disse...

Dia das crianças... eu ando meio fora de tempo. Pensei que já tinha passado.

Li o texto todo pensando em certas "outras coisas" que leio. Podemos enfiar nossas caras em livros, mas a grande história é a vida gente da mesmo. Com personagens que somem, outros que ficam e outros mais que preferimos não incomodar pra manter a lembrança boa.

Belo texto, Lorena.
Adorei.

Leandro Neres disse...

Sim sim, voltei pra ver tua resposta =p
Mas é claro q coloquei só como desafio-experiência, rsrs... E tbm já aconteceu isso comigo... O Éverton e o Léo, amigos de infância, eu já os vi na rua, foi mto estranho, nem os cumprimentei tbm... Já passei por essa sensação...
Enfim, gostei do comentário da Letícia sobre os personagens da vida... Melhor assim mesmo...
Bjos!

disse...

Linda sua história de infância minha linda criança!

Me fez voltar no tempo e lembrar quanto fui sapeca(e ainda continuo sendo).

Só que nunca mais revi meus amigos de infência, muitos já se foram, muitos ainda estão,m mas fato é que nos perdemos no tempo. Quem sabe lá no céu um dia nos encontraremos e daremos longas gargalhadas de nossas travessura. Mas nunca deixarei que eles se percam nos arquivos de minha mente, estaram sempre bem juntinhos do meu coração, longe ou perto eles existem e eu ainda os amo!

Beijos minha criança linda!

tiago.augusto disse...

Maravilha! Lindo texto! acho q todos temos esses momentos em que contemplamos nosso passado, mas ficamos com medo de perturbá-lo com a nossa realidade - tão diferente do que sequer podíamos imaginar. De vez em quando eu lembro dos pés de manga da casa do meu tio, como era bom sonhar em cima deles. ^^

Feliz dia das Crianças! [3] (atrasado).

bjo! o/

Anônimo disse...

Linda homenagem ao dia das crianças! Bom final de semana!