sexta-feira, 13 de março de 2009

Parte 3. Final.

Luri chegou lá em casa já adolescente, com quase dois anos de idade, o que equivale a 14 anos de uma pessoa(cada ano do cão corresponde a sete anos do ser humano). Uma husky siberiano, que e era do meu tio que estava se mudando para os EUA, então recebemos a Luri como filha adotiva, a caçula da casa. Nessa época já tínhamos o Lancelot e a adaptação dos dois não foi das mais fáceis. O Lan é extremamente ciumento e nunca aceitou muito bem dividir sua família com mais um cachorro. Nossa sorte (e a dele também, em termos) foi a Luri ser o cão mais dócil e boa-praça que eu já tive o prazer de conhecer. Ela era brincalhona, viva, mas também muito paciente e doce. Tinha uns olhos azuis capazes de conquistar qualquer um, e não foi diferente com o Lan, apesar de toda prosa dele e das implicâncias, eles acabaram se tornando unha e carne. Unha carne que vivam em pé de guerra, ele latindo e ela pulando em cima dele; mas ainda assim, inseparáveis. Aliás, a união acabou se tornando uma parceria com o tempo, o que provocou espanto, brigas e, claro, muitas risadas das coisas que os dois aprontavam juntos.

Lancelot sempre foi um "rebelde sem causa", mas a Luri, quando foi morar com a gente, era uma verdadeira lady. Educada por donos muito competentes em educação canina (ou seja, o oposto da minha família), ela não mordia, latia pouco, não destruía as coisas, não roubava comida, fazia as necessidades no seu jornal (especialmente para esse fim), nunca reclamou do banho, da ração, das vacinas, de nada. Uma mocinha muito bem comportada com a qual sabíamos lidar pouco. Nós estávamos acostumados com a "independência" (desobediência camuflada) do Lancelot, a luta diária que era pra ele cumprir o mínimo necessário para continuar sendo admitido na família, e um cachorro perfeito era algo totalmente fora da nossa realidade. Mas não precisamos nos preocupar com isso por muito tempo, porque o Lancelot se provou um ótimo professor e ensinou à Luri muito bem como se adaptar melhor à "família". O primeiro ato de rebeldia da nossa cadela foi a coisa mais linda de se ver: o seu primeiro banho de chuva! A cidade em que meus pais moram é tão chuvosa quanto algumas regiões da Amazônia (é sério, cientificamente comprovado e tudo mais, lá chove pra burro), então é mais comum termos dias chuvosos do que ensolarados. Isso era novidade para a Luri, que tinha vivdo a maior parte do tempo, até ali, no ES e passava a maior parte do dia em um lugar coberto, nunca em contato com a terra ou ao ar livre. Então imagina a surpresa e a felicidade danossa cachorrinha ao ver um quintal encharcado, cheio de poças, e água caindo do céu que Deus dava? Era como um parque de diversões, acho que ela nunca tinha nem sonhado com algo tão divertido! Ela corria, corria, pulava nas poças, rolava na lama, imprimia as digitais dela por toda a área de serviço e olhava pra gente com a cara mais feliz do mundo, como quem diz "por que não me apresentaram a isso antes?". Todo mundo parou pra ver a Luri tomando banho de chuva pela primeira vez e acho que todos nós nos emocionamos igualmente com aquela alegria tão simples, tão singela. Era como um lembrete: "olha, você também pode se permitir às pequenas felicidades da vida, é só querer"...

Uma vez experimentada a liberdade de fazer o que quisesse, ninguém mais segurou a Luri. Ela aprendeu de tudo: de roubar comida de cima da mesa a pular e fazer a maior festa quando chegávamos em casa, como se não nos visse há anos. Isso passando por roer tapetes, cavar os vasos de planta, pular a janela (principalmente em dias de tempestade, ela morria de medo dos trovões), caçar ratos, lagartixas, baratas, ou qualquer outro ser vivo que pasasse na frente dela. Tudo aprendido com um único professor, cúmplice e comparsa. Incontáveis foram as vezes que chegamos em casa e encontramos o Lan destruindo (ou já com o serviço feito) peças de roupa que estavam em lugares inacessíveis a um basset de 25 cm de altura. Percebemos que eles haviam formado uma dupla de meliantes, um alcançava o objeto de desejo e o outro destruía, os dois tomando parte no trabalho sujo. Eu confesso que não conseguia ficar zangada com os dois, os planos eram muito bem arquitetados e executados, eles eram os próprios Pinky e Cérebro e eu me divertia inventando as falas de um para o outro, no desenrolar do crime. Enfim, de mocinha bem educada a Luri passou a ser uma cadelinha bem travessa, perdendo somente para o rei da casa, mas continuava um doce, uma boba alegre, sempre "rindo" de tudo. A vida era uma festa para a Luri e quase nada a tirava do sério. A única experiência realmente estressante e traumática para ela foi a maternidade. Ela teve uma cria só, de oito filhotinhos tão vivos quanto ela e tão gulosos quanto o pai (e adivinhem quem era o pai?), que não a deixavam em paz um minuto! Eu nunca tive a oportunidade de ver outras cadelas cuidando dos seus filhotes, mas observando a minha própria eu poderia dizer que cachorros não apresentam cuidado parental (o que não é verdade, porque eles são mamíferos), porque eu nunca vi uma mãe mais desajeitada com a sua cria. Ela não tinha nem paciência de ficar deitada para os filhotes mamarem, várias vezes pegamos a Luri saindo do ninho com seis, cinco filhotes agarrados às tetas, que iam despencando dela pelo caminho e seguiam correndo atrás da fonte de leite que, simplesmente, resolveu ir embora. Acho que foi a única vez em que eu vi uma expressão enfadonha de cansaço naquele focinho, geralmente tão alegre. Com toda certeza, ela não tinha nascido para ser mãe. Então resolvemos o problema assim que possível, dando todos os filhotinhos logo que eles foram desmamados. E ela voltou a ser a nossa doida varrida de sempre.


Pose de quem odiava ser fotografada


Existiam diferenças bem marcantes entre nossos dois cachorros, algo que os diferenciava primariamente e os fazia exercer seus próprios papéis na família. O Lan era o macho territorialista, que impunha vontades (ou tentava), que brigava por atenção, que tomava a frente nas decisões e que sempre fazia as coisas do seu jeito. A Luri era sensível, calma, na dela, me lembrava bastante o que chamamos "lobo solitário", ela não necessitava de tanta atenção porque convivia bem com a sua solidão e precisava dela. Por isso mesmo ,acredito eu, ela era muito mais acessível que o Lan. Meu cachorro é extremamente carinhoso, sim, e carente, está sempre em cima da gente, do nosso lado, lambendo, se enroscando na gente, um grude. Mas não aceita que façamos nada que ele não queira que seja feito. Então, se ele quiser dormir ou comer, ou brincar, não adianta tentar abraçar, beijar, fazer carinho, ele não aceita nada disso. A Luri não era assim. A coisa que mais me lembro, quando ela me vem a cabeça, era como eu gostava de deitar ao lado dela, na barriga dela ou enfiar meu rosto no pescoço cheiroso que ela tinha (ela estava sempre cheirosa, por mais que se sujasse) e ficar assim, quieta mesmo, só sentindo a sua respiração. E ela deixava. Ela deixava que escovássemos o seu pêlo, que brincássemos de lutinha com ela, de cavalinho. Ela não sabia brincar de bola (porque o Lan nunca deixou ela aprender), então sempre que tentávamos, jogando a bola, ela nos olhava com aquela cara de louca que fazia a gente morrer de rir, como quem pergunta "o que eu faço agora?". Ela era um exemplo de boa convivência, de tolerância, de amabilidade, sabe... Perdi a conta de quantas vezes ela cedeu seu lugar para o Lan, deixou ele pegar seus brinquedos, deixou que ele tomasse sua frente nas brincadeiras, sem estresse nenhum, nenhum. Não era passividade, a gente via claramente que não era; era desprendimento e generosidade. Era tão generosa que os passarinhos adoravam comer sua comida e tomar banho na sua vasilha de água e o máximo que ela fazia era olhar para eles do cantinho dela, sem se incomodar com nada. E foi por conta desse espírito tolerante que minha cachorrinha pegou pneumonia fúngica, transmitida pelos passarinhos que adoravam tomar banho na sua água. Eu estava em casa de férias e percebi que a Luri respirava com dificuldade... Já estava no dia de vir embora, então avisei aos meus pais e pedi para levarem ela no veterinário, porque não me parecia normal. Eles levaram no dia seguinte e foi diagnosticada a pneumonia. Uma semana depois ela faleceu. Recebi o telefonema da minha mãe no meio de uma aula, "A Luri morreu...", e eu não soube como reagir. Liguei para a minha irmã e ela estava em prantos, mas eu não. Eu não chorei.

Aconteceu semana passada, dois anos depois, por um motivo que eu ainda não sei qual é, me lembrei dela antes de dormir e chorei. Chorei toda a saudade que eu sinto dela. Foi como quando minha tia morreu, há 13 anos atrás, apesar do choque eu fiquei "bem"... Não era insensibilidade, eu não sei explicar como essas coisas acontecem, mas acho que na hora não fez sentido. Até que um dia, muitos anos depois, revirando umas gavetas de um armáro antigo da casa da minha avó, eu achei a lembrança do funeral, uma foto dela, um poema e mensagens dos seus alunos. Foi como se eu tivesse sido atingida por uma onda. Nesse dia eu chorei tudo que podia, porque eu sabia, eu entendia de todo o coração, que aquela pessoa não voltaria nunca mais. E foi só então que eu percebi o buraco que ela havia deixado na nossa vida. Não sei se pra vocês parece exagero comparar as duas perdas, mas eu garanto que a saudade é a mesma. Lembro da risada da minha tia, da voz dela, do jeito como ela arrumava o cabelo. E também me lembro da Luri balançando aquele espanador que ela tinha como rabo, sua dança da felicidade cada vez que nos via, nós duas abraçadas nos dias de tempestade e o coração dela batendo como se fosse sair pela boca, sua loucura por pão e biscoito e a forma como ela tentava entrar "discretamente" debaixo da mesa enquanto almoçávamos. Todas essas lembranças estão guardadas de forma muito, muito especial, mas a ausência de nossa eterna "doidinha" vai sempre deixar um buraco na nossa vida.

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Pessoal, obrigada pelos comentários. Escrevi isso tudo num rompante, porque na verdade adoro falar das coisas que me são queridas. E os meus cachorros são parte muito importante da minha história. Só quem tem amigos como esses é que entende como é. =)

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11 comentários:

Anônimo disse...

Não faço ideia ! rsrsrs
Nossa, gostei da Luri. Ai, que mico, chorei kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Poxa, mas esse último pegou muito pesado.
A gota dágua foi "nós duas abraçadas nos dias de tempestade e o coração dela batendo como se fosse sair pela boca" Isso,foi golpe baixo rsrsrs
Lorepop, parabéns! Muito boa sua trilogia, não das cores, mas dos amores.
Beijo.
Muito bom mesmo.
Até.

Anônimo disse...

Chorei. Lembrei dos meus, que já se foram. =(
Não há diferença entre perder uma pessoa querida e um animal, se o amor que temos por eles é o mesmo.
Lindo, Lore!
bjs

Anônimo disse...

Cachorrinhos são tudo de bom. Melhor amigo é pouco pra defini-lo. Ah, comentei lá no outro blog! Amei o texto =)

Anônimo disse...

Ah, valeu pelo comentário! Valeu mesmo :-)

Amigao disse...

Ufa!
Emocionante, Loren.

Amigao disse...

Eu não sei se estou pronto pra ter uma relação deste tipo.Por enquanto estou curtindo.
Ontem mesmo falei duro com a Aninha e disse que se ela não tomar jeito vou acabar entregando pra adoção.Ela nem ligou, era como se um chachorro falando com o outro, rsrsrs.Quando cheguei a noite descobri que ela tinha destruido toda a palmilha do meu AllSTar. Agora entendi que foi por vingança, rsrsrsrs.
Beijão

Dulce Miller disse...

Já falei que você tem talento nato pra contar histórias, Lore?
Ficar imaginando a Luri tomando banho de chuva pela primeira vez foi lindo!
E no final você descreve a saudade com tanta doçura que chega a doer...
Ela era muito bonita e as fotos são perfeitas!

Beijos, querida!

Beto Canales disse...

interessante

Beto Canales disse...

interessante

Anônimo disse...

Adorei a série, você apresentou de uma maneira singular os traços de personalidade do Lan e da Luri. Gostei demais mesmo Lorena.

Inté.

Natália disse...

Concordo com a Du. Você tem talento pra contar histórias. As narrativas prendem e dá vontade de chegar logo no final pra ver o que vai acontecer, igualzinho nos livros de história.
A Luri parece que era mesmo encantadora e sim, ela tinha cara de quem não gostava de tirar fotos, hehehe.

Beijo, Lore